domingo, 13 de abril de 2008

Manifesto Ciborgue.

"Aqui é onde Kafka se encontra com Michael Jackson." Audacioso. Prepotente, até. Eu gosto disso. Uma chamada bem feita me leva a ver espetáculos dos mais horríveis.
Não que esse seja o caso aqui.
Mas, infelizmente, esse espetáculo também não cumpre o que promete.
Espetáculo feito de imagens. Ok. A explicação do diretor nem me incomodou tanto. Aí seguimos uma trajetória de símbolos que trazem uma carga de significado para o espectador que é até interessante. Eu ri um bocado. Alguns momentos, como o poema citado perto do fim ou quando o rosto aparece coberto com massa de pão até que ficaram em minha mente. Mas só. O instante mais profundo da peça foram aqueles em que os atores se distanciam de suas partituras e falam poemas. Não foi só pela beleza do texto, mas pela carga que era dada pelos atores. Era como se fosse um poema escrito por eles, ou pelo menos houvesse tocado fundo em algum ponto da pessoa (não do personagem) e eles conseguissem exprimir isso.
Isso foi belo. O resto, com o perdão do termo, foi kitsch. Muito referencial. Os símbolos eram usados sem sua profundidade necessária. Era como se ele buscasse o máximo de reconhecimento possível, simplificasse a coisa tirando sua profundidade ao invés de emaranhado de relações que se constrói em volta de um ícone. Você tinha que conhecer o que ele estava mostrando. Mas só. Comparar Frankenstein com Michael Jackson? Já vi isso antes, e muito mais bem feito.
O diretor parece só ter amarrado uma série de ícones, sem se preocupar muito com uma possível relevância dos mesmos. Eu vou ao teatro por um motivo. E é para sentir mais do que eu sinto ao ficar mudando de canal em casa. A peça me deixou essa impressão no final: Foi como se eu tivesse passado por uns 40 canais, encontrado algumas pérolas na TVU ou no Corujão da Globo, mas o sinal dava interferência e eu tinha que voltar para a MTV no momento em que passam clipes antigos ruins. Ruins e chatos.

sábado, 5 de abril de 2008

Mais Críticas do festival de Curitiba.

(OK, estou colocando esse balaio em ordem. Com sorte eu consigo tirar isso do sistema antes de ir para a FENART e ver mais peças.)

Dia 22/03
2ª peça: Scarrol: Da trilogia da duquesa à queda da rainha.
Do Grupo Heliogábalus
Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho. Parece que todo grupo de teatro já fez uma adaptação, uma releitura, uma citação que seja, de uma dessas duas obras de Lewis Carrol (ou das duas). E sempre fica parecido, a não ser que o grupo coloque novos ingredientes na mistura como o grupo Armazém fez. Mas para inserir novos ingredientes numa gororoba como Lewis Carrol é necessária pelo menos uma estrutura básica no sentido financeiro, já que representar o tema surreal de Alice literalmente seria pobre, ou no mínimo limitado*, e imergir o espectador exige uma dose considerável de efeitos cênicos (que custam $$$) sem falar em elementos performáticos para acrescentar realidade à teatralidade.
Se for para escolher um dos dois, fique com a performance e jogue o dinheiro fora (digo, pague os atores).
Os efeitos cênicos, caros ou baratos, serviriam para aprofundar a platéia no espetáculo, ou seja, seu efeito seria performativo. E profundidade é a proposta do Grupo Heliogábalus que, em Scarrol, segue fielmente a origem artaudiana do seu nome. Isso é feito com performances.
A escolha do local colabora. A Casa Vermelha oferece um leque de possibilidades que não o palco frontal. As cenas descem as escadas, aparecem atrás do público, ocorrem no segundo andar enquanto estamos no primeiro. Como algumas cenas são simultâneas, não sabemos onde será a próxima nem se irá envolver a nós, o público. Isso nos deixa nervosos. E isso para mim é teatro.
Com a apresentação inicial dada pelo Gato de Cheshire (pelo menos eu acho que era ele, com aquele sorriso macabro) o tom da peça fica claro: A crueldade presente em Alice, incluindo o tom sexual. Poderia ser só um show de horrores ou uma tentativa de chocar o público tornando explícita a sexualidade que é apenas subtexto na obra original. Mas é muito mais que isso.
Um texto que entra em conflito com as imagens formadas, o público levado a interagir com os atores e o cenário, momentos genuínos de tensão graças à expectativa que é construída em nós. Tudo o que Artaud queria. O grupo Heliogábalus transforma Alice em peste e terror. E dessa forma os problemas técnicos tornam-se irrelevantes (houve algum?) já que estamos tão tomados pela energia da encenação. Não, nem todos vão gostar. Sim, isso é teatro de verdade. Teatro que angustia, morde nosso coração e cospe fora. Sim, isso vale a pena milhares de quilômetros percorridos e dores nas costas decorrentes da viagem. Isso é arte. Arte bem feita.


*Não que necessariamente VÁ ser pobre. Mas em matéria de teatro já vi textos lindos serem transformados em lixo e textos horríveis virarem pedras preciosas. Por isso, quando se fala em teatro, eu só acredito vendo.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

As três irmãs.

Anton Tchekov é tido como um pilar na dramaturgia moderna. Esse escritor de contos e peças russo se esmera em mostrar o máximo possível do mundo interior de seus personagens com o mínimo de ações externas possível. É como cada personagem tivesse dentro de si um mundo subterrâneo a ser descoberto através de suas pequenas ações cotidianas.
Na montagem de "As Três Irmãs", de Tchekov, a primeira coisa que as atrizes fizeram foi interagir com o público. Estávamos na sala de espera quando as atrizes saem do teatro e falam conosco, nos dando balões e falando pra enchê-los mas não amarrar a ponta. Entramos no teatro e outra atriz está nos esperando. Devemos soltar os balões no momento que ela entrar em cena, para causar um "efeito especial".
Esse é o tom de interação que percorre toda a peça. Alguns de nós são chamados a entrar em cena para uma festa, outros são referidos como "o sargento" ou "nosso irmão Andrei" (eu fui esse último). O problema da existência de vários personagens na peça original é resolvido através da adaptação do texto e da transferência desse papel para o público. Isso não causa estranheza em nós, pelo contrário, permite que acreditemos na vida que se passa ali na nossa frente e é apenas contada pelos personagens ao invés de mostrada detalhadamente. Um dos problemas do teatro, na minha opinião, está no mostre-e-conte. Quando você vai lá na frente e recita algo. Isso me dá sono. Eu quero ver coisas em movimento (ou não, como em Beckett). Eu quero ver pulso. E essa encenação, com um texto clássico e técnicas de clown aplicadas a ele, me deu isso. Pulso. Vida.
Era o clown em sua forma mais elementar: a da crueldade. A da dor da impotência. Um dos personagens não tinha antebraços e outra era muito feia. A vida é mostrada em seus detalhes (o texto de Tchekov permite isso) e a interpretação nos faz sentir aqueles detalhes. A sensação que me acompanhou durante a peça foi a de que eu queria que a peça acabasse. Porque eu estava sofrendo junto com as garotas e não conseguia parar. Aquela vida que se estendia sem objetivo à minha frente era angustiante. Incrivelmente angustiante. E chegou a um ponto alto para mim quando a atriz, em um momento de tensão, chegou até uma espectadora e disse "Me joga?" Quando a moça não entendeu, a atriz explicou "Me joga fora?"
Essas e outras dores foram o que a Cia. Traço de teatro me proporcionou. Dores da presença. Dores de existir no mesmo espaço que as atrizes. Eu dividi a casa, a vida, e até o sangue (sendo o irmão Andrei, que perdeu tudo no jogo) com elas. Eu não assisti apenas. Elas me fizeram viver algo único e irrepetível. Uma outra vida. Com todas as implicações possíveis dessa palavra.
E foi maravilhoso.