Anton Tchekov é tido como um pilar na dramaturgia moderna. Esse escritor de contos e peças russo se esmera em mostrar o máximo possível do mundo interior de seus personagens com o mínimo de ações externas possível. É como cada personagem tivesse dentro de si um mundo subterrâneo a ser descoberto através de suas pequenas ações cotidianas.
Na montagem de "As Três Irmãs", de Tchekov, a primeira coisa que as atrizes fizeram foi interagir com o público. Estávamos na sala de espera quando as atrizes saem do teatro e falam conosco, nos dando balões e falando pra enchê-los mas não amarrar a ponta. Entramos no teatro e outra atriz está nos esperando. Devemos soltar os balões no momento que ela entrar em cena, para causar um "efeito especial".
Esse é o tom de interação que percorre toda a peça. Alguns de nós são chamados a entrar em cena para uma festa, outros são referidos como "o sargento" ou "nosso irmão Andrei" (eu fui esse último). O problema da existência de vários personagens na peça original é resolvido através da adaptação do texto e da transferência desse papel para o público. Isso não causa estranheza em nós, pelo contrário, permite que acreditemos na vida que se passa ali na nossa frente e é apenas contada pelos personagens ao invés de mostrada detalhadamente. Um dos problemas do teatro, na minha opinião, está no mostre-e-conte. Quando você vai lá na frente e recita algo. Isso me dá sono. Eu quero ver coisas em movimento (ou não, como em Beckett). Eu quero ver pulso. E essa encenação, com um texto clássico e técnicas de clown aplicadas a ele, me deu isso. Pulso. Vida.
Era o clown em sua forma mais elementar: a da crueldade. A da dor da impotência. Um dos personagens não tinha antebraços e outra era muito feia. A vida é mostrada em seus detalhes (o texto de Tchekov permite isso) e a interpretação nos faz sentir aqueles detalhes. A sensação que me acompanhou durante a peça foi a de que eu queria que a peça acabasse. Porque eu estava sofrendo junto com as garotas e não conseguia parar. Aquela vida que se estendia sem objetivo à minha frente era angustiante. Incrivelmente angustiante. E chegou a um ponto alto para mim quando a atriz, em um momento de tensão, chegou até uma espectadora e disse "Me joga?" Quando a moça não entendeu, a atriz explicou "Me joga fora?"
Essas e outras dores foram o que a Cia. Traço de teatro me proporcionou. Dores da presença. Dores de existir no mesmo espaço que as atrizes. Eu dividi a casa, a vida, e até o sangue (sendo o irmão Andrei, que perdeu tudo no jogo) com elas. Eu não assisti apenas. Elas me fizeram viver algo único e irrepetível. Uma outra vida. Com todas as implicações possíveis dessa palavra.
E foi maravilhoso.
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