sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Ainda é dezembro.

Eu já falei, em algumas resenhas sobre o festival de Curitiba, de adaptações. Adaptações de filmes, adaptações de livros, de poemas. O problema de transferir uma mensagem de um canal de comunicação para outro são todos os empecilhos que faziam algo valer a pena ser lido, por exemplo, não valer o celulóide no qual foi filmada sua adaptação. E vice-versa.
Isso acontece especialmente com narrativas no qual a ação é interna, como Clarice Lispector ou Virginia Woolf. A opção mais frequentemente usada é uma narração em off que destrói completamente o motivo por trás de uma adaptação. Eu penso : Pra quê você está lendo o livro pra mim? Tenho cara de analfabeto?
O conflito entre os meios usados para passar a mensagem e a superação deles é o que produz uma obra interessante. Eu não quero ver uma leitura, eu quero que o autor da adaptação insira sua marca pessoal na sua obra, sem perder de vista a original. Em alguns sentidos, é mais difícil fazer uma adaptação do que começar algo do zero. De certa forma é trabalhar uma obra do zero mas mesmo assim ter por trás uma série de parâmetros pelos quais se guiar. Só que se enveredarmos por esse caminho vamos entrar numa discussão retórica infinita, e eu não sou grande fã de masturbação teórica.
Fui assistir "Ainda é Dezembro", peça baseada nos textos de Virgina Woolf. Assistir teatro em Natal sempre me incomoda por causa do simbolismo vazio. Mas, confiando nas cabeças pensantes por trás do processo, fui lá.
Na entrada, a platéia foi dividida em duas. Ao passar por um túnel feito de pequenos praticáveis de madeira (experiência claustrofóbica), metade da platéia sentaria em volta de onde se daria a encenação e a outra metade ficaria no túnel. Como eu não pude ficar no túnel, só ouvi o momento inicial da peça, que foi apresentado num local onde apenas as pessoas que ficaram presas poderiam ver.
A experiência sinestésica diferenciada e o uso de elementos sensoriais ao invés de simbólicos demonstra uma noção muito boa do texto com que estão lidando: As coisas não simbolizam por si só, elas têm que significar algo, e isso tem que ser passado para o público. Essa experiência de sentir o desconhecido ao adentrar o túnel (ok, ok, sem piadas aqui) me inseriu naquele universo: O universo de Virginia Woolf, onde as coisas existem e se apresentam para mim antes que eu possa nomeá-las. O mundo é arbitrário, fugaz e inominável, e nossa vida, frágil. Nessa entrada eu senti o que quer dizer "Viver, por um dia que seja, é algo muito perigoso."
Durante a peça, os momentos que mais me tocaram foram aqueles nos quais as palavras não eram usadas. Eu tive certas epifanias, e um espetáculo ser capaz de fazer isso já é algo incrível. A mais forte ocorreu durante os momentos em que as atrizes se tocavam no centro do palco. A energia que elas construíam, as imagens, o que aquilo passava para mim era equivalente a ler algo de Virgina Woolf: Eu vi o vazio da vida, dos corpos, das emoções. Esse vazio que nos leva a fazer contato com outras pessoas. O vazio que tem sede.
E, em Virginia Woolf, isso alcança um caráter de homossexualidade. Não vai além do sexual em busca de um mero toque de um corpo no outro (que às vezes pode significar muito), mas passa por uma definição muito clara de gênero: O homossexualismo feminino, não como uma inversão de papéis e repetição de pólos positivo\negativo, ativo\passivo ou masculino\feminino, como tanto se advoga em certas teorias, mas o homossexualismo feminino como encontro de seres que são massas de desejo. O feminino como vazio que busca algo para preenchê-lo, que busca nome para seu amor. Não sei se gênero está irrevogavelmente gravado em nossos corpos, mas essa noção é algo que eu nunca poderia ter de outro modo que não fosse assistindo essa peça. Eu vi como o feminino se coloca no mundo, eu vi desejos afiados como lascas de osso (para citar As Horas) dançando e se entrecortando para encontrar algo. É uma entrega, um desapego e um amor que eu nunca conseguiria ter enxergado de outra forma.
Sim, existem problemas técnicos na peça, existem momentos que podem melhorar em qualidade para refletir outras características dos textos de Virginia Woolf, como por exemplo o movimento das ondas do mar. É um espetáculo que, na minha opinião, está em fase inicial de desenvolvimento. Ainda tem muito para desabrochar.
Mas isso é um detalhe. O importante é que há uma semente. E com isso se pode fazer qualquer coisa.

Um comentário:

Ramilla Souza disse...

vou sugerir que o paulo use esse texto como material de uma das oficinas. ele pretende montar mais coisas na linha desejo/sexo e eu gostei muito da parte do "homossexualismo feminino como encontro de seres que são massas de desejo". boa crítica. parabéns!